domingo, 9 de junho de 2013

MEMÓRIAS DA EMÍLIA - Monteiro Lobato

Tanto Emília falava em "Minhas Memórias" que uma vez Dona Benta perguntou:
- Mas, afinal de contas, bobinha, que é que você entende por memórias?
- Memórias são a história da vida da gente, com tudo que acontece desde o dia do nascimento até o dia da morte.
- Nesse caso - caçoou Dona Benta - uma pessoa só pode escrever memórias depois que morre...
- Espere - disse Emília - O escrevedor de memórias vai escrevendo, até sentir que o dia da morte vem vindo. Então pára; deixa o finalzinho sem acabar. Morre, sossegado.
- E as suas memórias vão ser assim?
- Não, porque não pretendo morrer. Finjo que morro, só. As últimas palavras têm de ser estas: " E então morri..." com reticências. Mas é peta. Escrevo isso, pisco o olho e sumo atrás do armário para que Narizinho fique mesmo pensando que morri. Será a única mentira das minhas Memórias. Tudo mais verdade pura, da dura - ali na barata, como diz Pedrinho.
Dona Benta sorriu.
- Verdade, pura! Nada mais difícil do que a verdade, Emília.
- Bem sei - disse a boneca - Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e sei também que é nas memórias que os homens mentem, mas quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta ideia do escrevedor. Mas para isso ele não pode dizer a verdade, porque então o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha, para dar ideia de que está falando a verdade pura.
Dona Benta espantou-se de que uma simples bonequinha de pano andasse com ideias tão filosóficas.
- Acho graça disso de você falar de verdade e mentira como se realmente soubesse o que é uma coisa e outra. Até Jesus Cristo não teve ânimo de dizer o que era verdade. Quando Pôncio Pilatos lhe perguntou " Que é verdade?" ele, que era Cristo, achou melhor calar-se. Não deu resposta.
- Pois eu sei! - gritou Emília - Verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia. Só isso.
Dona Benta calou-se a refletir naquela definição, e Emília, no maior assanhamento, correu em busca do Visconde de Sabugosa. Como não gostasse de escrever com a sua mãozinha, quera escrever com a mão do Visconde.

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